quarta-feira, 19 de agosto de 2009

CULTURA, DIREITO E HISTÓRIA

CULTURA, DIREITO E HISTÓRIA





O homem, um ser racional, tem posse e utiliza a razão para refletir, emitir juízos, dominar e modificar a natureza, buscar conhecimentos técnico-científicos, elaborar conceitos e idéias. E todos esses atos do homem de conhecer, refletir e de raciocinar sobre os demais seres vivos, é expandida também a capacidade de conhecer e compreender a si mesmo. Como ser racional e pensante, transcende os limites impostos pelo seu corpo e cria novas realidades, novas coisas, e o mais importante o homem não se conforma com a sua pura e simples inserção no mundo, através da sua razão, e das determinações naturais, cria uma nova realidade, um mundo de cultura e valoriza assim a sua espécie.
O homem atribui sentido a tudo, mas não se contenta em estabelecer como devem ser as coisas ao seu redor. Assim, torna-se objeto de si mesmo e se transforma, ao negar sua essência puramente natural, naquilo que julga que deve ser através da educação,cultura e os seus direitos como cidadão em uma sociedade cheia de conflitos.
Segundo Roberto Lyra Filho, as palavras Direito e Lei, que se confundem em muitas línguas, até muito parecidas, mas que porém não possui a mesma significação. Diz ele que a Lei é instrumento, emana do Estado e portanto permanece ligado a classe dominante, aquela que controla o Estado. Nem toda lei então representa Direito, que será posteriormente definido, muitas delas representam pura e simplesmente interesses de determinados grupos dentro da esfera do poder. Cabe analisar essas leis e interpretá-las para que se entenda se sim ou não elas representam Direito. O Direito define o autor, é indicação dos princípios e normas libertadoras, são conquistas.

O Direito é fruto da obra humana e, portanto, construído gradualmente através da objetivação de determinados valores em um dado momento histórico. A historicidade do Direito, entretanto, nem sempre esteve clara. Esta tomada de consciência está diretamente relacionada com o historicismo, movimento que nasce no contexto do romantismo e que questiona o desprezo pelo material histórico e a possibilidade de dedução racional do Direito defendida pelo Iluminismo. A história foi, tradicionalmente, entendida como algo puramente contingente, o que inviabilizava qualquer análise racional. Será através do historicismo, especificamente em Hegel, que se demonstrará a possibilidade de conciliação de razão e história. Aplicar a razão à história, este foi o desafio hegeliano que encontra superação quando Hegel assume uma premissa em seu pensamento: a contradição não deve ser eliminada da história para que esta se concilie com a razão. Ao contrário, a contradição integra a história, é seu motor. Aqui, eis aberto o caminho para uma nova perspectiva de análise histórica.
No que se refere ao Direito, a sua compreensão como objeto cultural, enfim, histórico, se torna possível a partir desse momento. Não se trata, todavia, da assunção da idéia segundo a qual o Direito é construído aleatoriamente, como resultado de circunstâncias puramente contingenciais. A conciliação história-razão torna possível a tomada do Direito como
expressão de razão, como um revelar-se gradual da razão e, conseqüentemente, um realizar-se gradual da justiça na história.
A constituição surge como resultado desta concepção, como forma racional de limitação do poder político. A idéia de constituição não poderia surgir anteriormente. Enquanto a criação do Direito foi compreendida somente sob a perspectiva da necessidade histórica que imediatamente o produzia, ou ainda, enquanto o direito foi, assim como a história, tomado como algo puramente contingente, não foi possível a concepção de uma norma que, produzida racionalmente, fosse capaz de estruturar o Direito e o poder de forma racional. Enfim, não foi possível a concepção de um projeto cuja efetivação resultaria na figura do Estado de Direito.
A história do Estado de Direito, através de suas formas históricas, demonstra a constante evolução do Direito e sua maior racionalização por meio do reconhecimento dos direitos fundamentais. O Estado democrático se revela resultado deste processo histórico, a mais alta expressão de racionalidade em virtude do compromisso de conciliação definitiva da vontade política com os fins éticos, através não só da declaração ampla e irrestrita, mas também do compromisso de realização dos direitos fundamentais.

INTRODUÇÃO

Eis, em Lima Vaz, o grande paradoxo com o qual o homem se depara no seu esforço de construir um conhecimento totalizante: a filosofia é obra da cultura, é forma de saber racional que traz em si a pretensão de compreender e explicar o todo da realidade, dentro do qual está a própria cultura de onde procede.
Todo conhecimento, pelo simples fato de ser produto humano, é cultura. As ciências, nascedouros do conhecimento, não têm a pretensão de totalidade, típica da filosofia, se concentrando na investigação de um objeto determinado. Em virtude do recorte que as ciências fazem na realidade ao definir seu objeto de estudo, elas podem ser divididas em ciências histórico-culturais, ou ciências do espírito, e ciências naturais. Assim, em que pese serem ambas cultura humana, somente a primeira tem como objeto a própria cultura. Isso se deve a uma clássica cisão operada na realidade entre a natureza e a cultura. O mundo da cultura é o mundo construído pelo homem. Este não se contenta com as determinações naturais que transformam tudo no que deve ser e estabelece, através do seu julgamento, um novo devir para as coisas.Reale já observava que “a cultura não é senão concretização ou atualização da liberdade, do poder que o homem tem de reagir aos estímulos naturais de maneira diversa do que ocorre com os outros animais.”
Salgado esclarece que o homem, como no mito de Midas, atribui sentido a tudo o que toca, constituindo a sua obra, a cultura, e observa que ele não se contenta em atribuir sentido ao que lhe rodeia. No mundo da cultura, o homem nega a sua realidade natural e julga o que ele deve ser, transformando-se pela educação. O homem é obra de si mesmo.

O pensar humano pressupõe três etapas, a saber, o ser, a essência e o conceito. Entretanto, a processualidade do pensar varia de acordo com a natureza do objeto, cultural ou natural. Assim se diferencia o explicar, típico das ciências naturais, do compreender,

específico das ciências culturais. Dilthey deixa a questão esclarecida ao afirmar que a natureza se explica, a cultura se compreende.
As ciências naturais procuram explicar o seu objeto, isto é, buscar a causa, os nexos e as relações de interdependência pertinentes ao fenômeno observado, objetivando o estabelecimento de leis que explicitam estas relações de forma definitiva, posto que tais relações expressam necessidade, vale dizer, ocorrem necessariamente de uma tal forma. A explicação pressupõe uma total separação entre sujeito e objeto. Trata-se de um processo analítico que busca a captação da essência da realidade que será expressa no conceito.
As ciências culturais, que têm, portanto, como objeto a obra humana, visam a sua compreensão. Esta consiste na captação do sentido da totalidade da coisa, não havendo mais separação entre o sujeito e o objeto. A compreensão não é uma visão das coisas sob a perspectiva de seus nexos causais, mas sim, uma análise do objeto em sua integridade, buscando seu sentido, sua finalidade.
O Direito, enquanto fruto da obra humana, pertence ao mundo da cultura e, assim, é objeto das ciências culturais. Diferentemente das ciências naturais, regidas pelo princípio da causalidade, o fenômeno jurídico não conta com a exatidão decorrente da causalidade e, por isso, exige procedimentos diversos na sua análise.
Kant operou uma cisão na realidade entre o mundo do ser, passível de conhecimento apenas enquanto fenômeno através dos instrumentos dos quais se vale a razão teórica, e o mundo do dever ser, onde a razão prática, auto-suficiente, determina o agir humano, isto é, o mundo da liberdade.
Kelsen assume plenamente a cisão entre a esfera do ser e do dever ser, cisão absolutizada na afirmação de que do ser não pode derivar o dever ser e vice-versa. Ordem jurídica e ordem natural dizem, portanto, respeito a esferas diversas e, conseqüentemente, as leis que delas emanam têm natureza diversa. A prescrição expressa nas normas jurídicas – e não somente uma descrição – evidencia a sua natureza de construção humana, transformadora da realidade natural e formadora do mundo da cultura.

DESENVOLVIMENTO
O mundo da cultura e, portanto, do Direito, é um mundo construído gradualmente, marcado pela alteração de valores preponderantes que são objetivados num dado momento histórico. Para Recasens Siches, é mediante a cultura que se dá a efetivação de valores até então tidos como ideais. Estes valores, no entanto, não são constantes. Toda obra cultural tem uma significação circunstancial, isto é, nasceu de uma situação histórica para atender às necessidades humanas daquele momento.
Também o Direito adota e realiza valores considerados preponderantes num dado contexto histórico. Não só a assunção de valores caracteriza o objeto cultural. A ordem jurídica é construída gradualmente e sua evolução depende da comunicação das conquistas de cada geração. Esta transferência é fator típico do mundo da cultura. Há uma intrínseca relação, segundo Bodenheimer, entre a evolução civilizacional e a evolução do direito. O ponto alto do direito romano, por exemplo, corresponde ao ponto alto da cultura romana, a era de Augusto. O direito é importante instrumento de civilização.
A evolução e a constante absorção de valores ressaltam a historicidade do direito enquanto fruto da cultura humana. Tal aspecto, entretanto, foi contestado por alguns, como Spengler, que tomou a evolução de cada civilização como um ciclo cerrado. Em que pese a evolução geral da humanidade, cada civilização segue o mesmo trajeto de desenvolvimento. Todas precisam passar pelas mesmas etapas de desenvolvimento, cada uma a seu modo, conforme seu espírito, do nascimento até a sua decadência. “O ato já produzido de um (povo) não pode ser vivificado pelo outro, senão infundindo-lhe este sua existência.” Assim, toda experiência humana se desenvolve como organismos biológicos.
A cultura e também o Direito são essencialmente históricos. Tal característica foi ressaltada pelo historicismo que, rompendo com a tradição iluminista, abre nova perspectiva. O historicismo surge no contexto do romantismo europeu. O romantismo é marcado por uma reação à ilustração, opondo o sentimento à razão, a concepção de Estado

como um todo orgânico à de Estado como resultado de um contrato. Assim, o historicismo representa uma reação ao racionalismo que, ao empregar o método dedutivo, demonstra desprezo pelo material histórico.
O historicismo, sob quaisquer formas de manifestação, seja político, seja historicismo filosófico e, especialmente, na figura da Escola Histórica do Direito, tem papel fundamental na mudança da concepção do Direito, afirmando, de forma irrevogável, a sua historicidade, posto que fruto da cultura.
Para Savigny, representante da Escola Histórica do Direito, o Direito nasce do povo, está na consciência popular. O Direito, assim, seria algo extremamente enraizado no passado da nação e tem como fontes verdadeiras o costume, a crença popular e a consciência comum do povo. A função do legislador é dar existência exterior ao Direito. As instituições se baseiam na história e na tradição dos povos. É um equívoco querer mudá-las através de raciocínios abstratos. O direito, como a linguagem, é produto de um lento desenvolvimento do espírito do povo e não de uma vontade arbitrária.
O destaque à história já é patente na filosofia de Hegel. Se Hegel, por um lado, se aproxima do jusnaturalismo ao conferir um status privilegiado à razão, por outro se distancia dele, na medida em que nega a existência de direitos imutáveis deduzidos pela razão. A razão se revela na e através da história.
Lima Vaz explica que há uma característica comum a todo historicismo. Nele, ethos, cultura e história são os três conceitos que, articulados, constituem a estrutura do paradigma historicista:
“A história tem na cultura sua face propriamente humana, oposta à contingência e ao aleatório dos fatores naturais, a cultura tem no ethos suas razões normativas e sua teleologia imanente. Pensar a articulação desses três conceitos na forma de uma filosofia da história, tal o desafio que (…) passa a ser o motivo dominante do vasto e complexo movimento de idéias que compreende o Romantismo

Salgado observa, contudo, que a filosofia de Hegel não se concilia com o historicismo jurídico. Este toma a irracionalidade como fonte do Direito traduzida nas

idéias de costume e espírito do povo que nada mais são que um sentimento. Este espírito não se assemelha ao conceito hegeliano. Para Hegel, o espírito é a razão na história.
A racionalidade está no próprio movimento da história, não se separando da realidade. A razão não é algo externo que estabelece como deve ser o Direito, como acreditou o jusnaturalismo, mas é elemento do próprio ser do Direito que se revela através da cultura. Assim, em Hegel, o Direito é produto da sociedade cuja história tem a razão como algo imanente. O Direito é eminentemente histórico e, portanto, cultural.
Recasens Siches esclarece que, em Hegel, o espírito objetivo, isto é, a cultura, desenvolve-se dialeticamente. O autor ressalva, no entanto, que a cultura é o espírito objetivado. Se se concebe a cultura como obra ou expressão de um espírito objetivo, ou uma alma coletiva, o sujeito individual fica relegado ao segundo plano, como um meio a seu serviço. A cultura é obra humana, não vive por si e não se transforma por si mesma. “La caracterización de los productos humanos como vida objetivada es una caracterización ontológica es decir, es un intenso de definir el modo de ser de la cultura.”

A idéia de evolução trabalhada por Hegel constitui o núcleo da doutrina de Sumner Maine. Também Spencer procurou descrever a evolução do Direito e da civilização no decorrer histórico. O que há em comum entre Hegel, Spencer e Maine é a idéia de que o avanço civilizacional se dá com o crescimento da liberdade. Para estes autores o Direito é produzido por uma evolução cultural que leva à maior efetivação da liberdade.
A concepção histórica do Direito possibilitou a afirmação peremptória do mesmo como produto humano, fruto da cultura e, simultaneamente, a conciliação definitiva entre Direito e razão, posto que, quanto mais racional, mais apto a realizar a liberdade, a justiça. A evolução do Direito implica, portanto, num crescente processo de racionalização.
O movimento de constitucionalismo é símbolo desta evolução. Ferreira Filho ressalta a importância do iluminismo neste processo ao demonstrar que, antes dele, “ninguém ousou afirmar que o homem pudesse modelar essa organização Estado segundo
um ideal racionalmente estabelecido. Até então se considerava que essa organização era necessariamente fruto da história.”
A ligação entre Direito e razão, contudo, não se dá de forma imediata, como quiseram os jusnaturalistas, mas pressupõe a mediação da história. O Direito é essencialmente histórico e a história, processo de revelação da razão.
O constitucionalismo, segundo o professor José Luiz Borges Horta, é um fenômeno típico do Estado de Direito, pois se traduz num esforço para racionalizar juridicamente o exercício do poder político. A história do constitucionalismo é uma constante busca pelas limitações do poder absoluto. O constitucionalismo inaugura uma nova concepção de estruturação e função do Direito e uma nova fase na história do Estado. Através da ruptura com o Estado Absolutista pela submissão do poder político ao direito, nasce o Estado de Direito.
A história do Estado de Direito, entretanto, tem início antes mesmo do seu surgimento histórico. Assim, a sua compreensão pressupõe uma análise que remonta à gênese histórica do próprio Estado.
Para Salgado, a história da cultura ocidental, simbolizada pela complexa relação entre poder e liberdade, pode ser dividida em três momentos fundamentais: o período clássico ou Estado ético imediato, onde o poder se justifica em função do fim do Estado - a perfeição ou bem do indivíduo no Estado Grego, a garantia do direito de cada um, o justo, no Estado Romano; o período moderno ou Estado técnico, no qual o poder é considerado em si mesmo, havendo apenas justificações técnicas para se alcançar e conservar o poder (Maquiavel); e o período contemporâneo ou Estado ético mediato ou, ainda, Estado de Direito, onde o Estado se justifica pela sua origem (consentimento), sua técnica (procedimentos pré-estabelecidos) e sua finalidade, essencialmente ética (declaração e realização de direitos fundamentais). Assim, a justificativa do Estado de Direito se dá em três momentos, na legitimidade do poder que se refere à origem, ao exercício e à finalidade, na legalidade e na justiça, através de sua relação com o indivíduo com vista à realização da liberdade na esfera pública e privada.

É preciso destacar, contudo, que a história do Estado de Direito não se finda com a simples superação do Estado técnico, mas sim, se inicia, em que pese suas raízes que remontam à Antiguidade.
Desde a formação do Estado moderno o direito passa a ter como fonte primordial a vontade soberana. Tal fato leva a uma necessidade absoluta de justificação desse poder. Assim, surgiram as teorias contratualistas que procuraram fundamentar o poder soberano na autonomia da vontade decorrente do contrato:
“Na sua forma abstrata de criação do direito não é suficiente, pois fundado por um conceito abstrato de liberdade como autonomia no momento de constituição formal ou meramente lógico-formal do pacto. Para que possa gerar um direito válido não basta essa origem formal, mas se exige a reflexão racional do conteúdo desse direito; isso significa o encontro dos valores a serem como tais declarados e sua atribuição como bens jurídicos às pessoas.”
O Estado de Direito, como se vê, não se limita à justificativa formal do poder soberano de onde provém o Direito. Mais que um fundamento na autonomia da vontade – que serve tanto ao Estado de Direito quanto ao Estado despótico – busca-se a realização concreta do valor absoluto que homem expressa, a sua dignidade.
O Estado Liberal apresenta uma nova estruturação de Estado, em oposição à estrutura absolutista, posto que tem seu poder limitado, vale dizer, tem o poder político submetido ao Direito. O século XVIII, com suas revoluções e a conseqüente promulgação de constituições, dá início a uma nova fase na história do Estado que terá como características primordiais a limitação do poder através do Direito, bem como o gradual reconhecimento de direitos fundamentais.
O Estado Liberal, no dizer do Prof. José Luiz Horta, se revelou uma grande conquista, na medida em que a vontade humana diretora do poder foi substituída e submetida à vontade impessoal das normas. O Estado Liberal se mostrou como modelo histórico que se aproximava da idéia de democracia. No entanto, as novas exigências
Também o reconhecimento dos direitos fundamentais pode ser considerado uma limitação ao poder político, uma vez que vincula o poder a uma finalidade pré-estabelecida, cuja realização exige uma ação ou uma omissão do Estado. Assim, o Estado já nasce com um objetivo a ser atendido, como preconizara Locke, para o qual não cabe discussão ou descumprimento.
desencadeariam a longa passagem da democracia governada, na qual há primazia da liberdade individual, da autonomia, até a democracia governante, ponto de chegada do processo histórico do Estado de Direito, onde a liberdade de participação tem prevalência.Esta passagem, contudo, não se dá sem intermédio do Estado Social.
O Estado Liberal havia sido fruto das revoluções burguesas e, portanto, assumia seus ideais e valores, os quais, com o tempo, se revelaram insuficientes para a maioria da população. Ademais, o próprio desenvolvimento econômico e seus reflexos sociais evidenciaram a necessidade de transformação do Estado que, em função dos novos valores reivindicados, adotaria uma postura intervencionista. Os direitos fundamentais agora reconhecidos pelo Estado exigem uma atuação efetiva do Estado para sua concretização, diferentemente do que acontece com os direitos individuais, direitos que pressupõem, via de regra, a omissão do Estado para se efetivarem.
Não se pode ignorar, entretanto, que o Estado social foi sucedido, em muitos casos, por Estados totalitários que exacerbaram o caráter intervencionista, desconstruindo a estrutura jurídico-política vigente. A expansão do poder executivo exigida para que o Estado atenda a sua nova função, por si só, já põe em risco a estrutura do Estado de Direito. Fato é que o Estado social oferece solução à insuficiência do Estado liberal, resolve os conflitos sociais através da satisfação das necessidades, mas não é capaz de evitar o totalitarismo, uma vez que seus ideais são compatíveis com a centralização de poder. Vale lembrar, ainda, que muitas denominações, como Estado Social e Estado de Justiça Social por exemplo, foram utilizadas por Estados cuja estruturação não tinha nenhuma correspondência com o Estado de Direito.
O Estado de Direito, por sua própria natureza, é incompatível com a ditadura, não só em virtude da sua processualidade, que submete a atuação estatal ao Direito, mas também em virtude dos próprios valores que acolhe.
Isso não significa, entretanto, que a burguesia tenha sido a única beneficiada com as conquistas do Estado Liberal. Estas foram conquistas universais, o que significa dizer que toda a sociedade, e não uma classe apenas, se beneficiou.

O Estado democrático de Direito dá origem a uma nova era. Ele proporciona à democracia um caráter universalizante, posto que se funda na efetiva partilha de poder entre os cidadãos.
“O Estado democrático de Direito realiza a unidade da processualidade formal da convergência de vontades sem conteúdo (…) e da processualidade do conteúdo ou do real, segundo um princípio de racionalidade imanente à cultura, expressa e materializada essa processualidade ideal (racional) nos valores fundamentais postos como direitos.
Assim, o Estado democrático se revela como mais eficaz na garantia dos direitos humanos, não só porque transcende a mera participação formal dos indivíduos típica do Estado liberal, através da efetiva partilha do poder entre os cidadãos, mas também porque reconhece de forma universal, e não apenas no âmbito intra-estatal os direitos fundamentais.
Lima Vaz explica que a democracia é expressão da mais alta forma de organização política da sociedade e, portanto, se desdobra em ideal e necessidade histórica. A superioridade do Estado democrático frente ao despótico se mede não pela utilidade ou eficiência, mas pelo bem maior, mais perfeito. Tal superioridade pressupõe a consideração de uma essência ética no político, isto é, uma íntima ligação entre dois elementos que, contrariando a articulação já feita por Aristóteles entre ética e política como ciências da práxis, são tomados frequentemente como antagônicos, incompatíveis: “Ao contrário do que pretendem os esquemas mecanicistas da moderna filosofia política, o espaço político não se estrutura fundamentalmente como jogo de forças, mas como hierarquia de fins.”
O Estado democrático se revela historicamente como síntese dos dois momentos anteriores. Não se trata de uma mera junção das características liberais e sociais puramente. A síntese pressupõe a superação dos Estados que o antecederam, embora fiquem resguardados alguns de seus traços. O Estado democrático não só assume direitos individuais e sociais conquistados anteriormente, como também declara outros direitos fundamentais, além de buscar sua efetivação universal.
A história do Estado de Direito cujo ponto de chegada é o Estado democrático é, portanto, uma trajetória onde as conquistas de cada momento são agregadas ao momento
posterior, sem que haja necessidade de renúncia a um valor para atendimento de outro. Isso explica porque o Estado social, por exemplo, continua a conservar o valor da liberdade revelado no Estado liberal a despeito da sua conformação e do seu perfil interventor. Neste sentido, explica Nelson Saldanha que
“Não se trata, convém salientar de imediato, de uma permanência do liberalismo enquanto “ismo”, ou seja, regime, ou mesmo doutrina, tal como nos séculos XVIII e XIX. Trata-se da persistência de valores: do valor da liberdade, do valor controle-dos-atos-estatais, do valor garantia-de-direitos, do valor “certeza jurídica.”
A estrutura do Estado democrático garante-lhe uma legitimidade maior que aquela encontrada nos Estados liberal e social. A universalização da participação no poder permite um reconhecimento da validade deste poder mais ampla, atingindo não só a sua criação, mas também o seu exercício. O contratualismo do período moderno, através da idéia de autonomia, estabelecia uma legitimidade apenas no que se referia à criação do Estado. A participação efetiva no poder garante a substituição da legitimidade meramente formal pela legitimidade efetiva.
Essa mudança, entretanto, não significa abandono da idéia de autonomia, pressuposto inexorável para a legitimação de um dado Estado e do poder político que nele se estrutura. Fato é que a autonomia da vontade no contratualismo é vazia de conteúdo, em que pese a sua evocação na esfera política para a justificação da existência do Estado. Autonomia é capacidade de autodeterminação, isto é, capacidade de legislar para si mesmo. Nesse momento, entretanto, ela se traduz e se limita à aquiescência da vontade individual no que diz respeito à constituição do Estado. A autonomia aqui é puramente formal, posto que se extingue, enquanto autonomia no seu exercício público, no momento subseqüente ao contrato e, com isso, dá origem a uma legitimidade formal apenas. Isso explica como um Estado que tem origem na vontade livre de seus cidadãos pode assumir a forma absolutista.
O Estado democrático conserva tal pressuposto, vale dizer, ainda assume a idéia de que a constituição do Estado se dá nos moldes da vontade de seus cidadãos. Não se contenta, entretanto, com essa legitimidade formal, insuficiente e busca uma autonomia da vontade plena de sentido e de efetividade. Desta feita, a autonomia da vontade se estende também ao momento posterior à criação do Estado através da participação dos cidadãos no
governo do Estado. No dizer de Höffe, a democracia é um dos princípios fundamentais da justiça e se traduz no imperativo de instituição de um governo do povo e para o povo.
É em função desta estruturação e da conseqüente legitimidade que o Estado democrático se mostra mais próximo da idéia de Estado de Direito que as formas anteriores. A vontade impessoal da lei que governa o Estado desde o início da história do Estado de Direito encontra seu ápice neste momento, onde se torna correspondente à vontade de seus cidadãos.
Na democracia, o poder se mostra quase palpável, extremamente visível, exposto, fato que poderia até gerar certa estranheza, já que a idéia de visibilidade, concretude do poder sempre esteve mais ligada a Estados totalitários. Como explica Bobbio, “o poder autocrático não apenas esconde para não fazer saber quem é e onde está, mas tende também a esconder suas reais intenções no momento em que suas decisões devem tornar-se públicas.” O poder democrático, enquanto expressão da vontade de seus cidadãos, pressupõe publicidade como forma de controle da correspondência entre a condução do Estado e a vontade dos indivíduos a ele submetidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão da evolução do Direito pressupõe dois elementos fundamentais, a admissão do direito como obra humana, histórico, portanto, e a afirmação da história como lugar onde a razão se manifesta. Não se trata de um processo linear onde apenas se acumulam progressos, mas sim de um movimento que, a despeito dos avanços e retrocessos, aponta sempre para o melhor, para a maior concretização da liberdade. A história da humanidade só é possível pela reconciliação da necessidade com a liberdade. Para Kant, a liberdade era o fio condutor da história. Também Schelling buscou tal conciliação:
“Essa identidade do livre arbítrio e da necessidade é o que permite […] reencontrar seu absoluto na história e ver, nela, não somente uma obra dos
homens sem eficácia permanente, mas uma manifestação ou revelação do próprio absoluto.”
Hegel faz, definitivamente, a síntese de razão e história, entendida está como processo de revelação do Espírito. Isso implica na consideração da história não como uma sucessão de fatos aleatória, mas interligados pela inteligibilidade de seu dever-ser.

A revelação da razão na história, identificada pelo gradual reconhecimento e efetivação da liberdade, fica clara na análise do Direito e do Estado. Assim, surgirá a idéia de Constituição, como instrumento de racionalização do Direito e do poder através do qual os direitos até então tomados como puramente naturais (concepção jusnaturalista) ganham reconhecimento e efetivação pelo Estado. A constante ampliação destes direitos corresponde às etapas que o Estado de Direito, na sua constante conciliação com a ética, atravessa ao longo de sua história. Assim, à luz da declaração de novos direitos, assume perfis diversos, a exemplo do que ocorre no Estado liberal e social.
O Estado democrático promove a consagração dos direitos fundamentais, através de um reconhecimento universal. Ele constitui a mais alta expressão de racionalidade na história do Estado de Direito, pois através da declaração e da efetivação desses direitos, busca a realização do valor absoluto que só o ser humano - racional e, portanto, livre - é capaz de expressar, a dignidade humana.
Se a cultura é o meio pelo qual se dá a objetivação dos valores assumidos pelo homem, o Estado democrático e toda a história que o antecede e o oferece como resultado à humanidade apenas reafirmam o caráter de obra humana e, portanto histórico, do Estado e do Direito e evidenciam a inexorável relação entre história e razão, explicitada no avanço de ambos através da gradual conquista da liberdade. Reale enfatiza, também, que a história não pode ser imaginada como algo acabado e que a própria categoria do passado só existe na medida em que haja possibilidade de futuro.

(...) Qualquer conhecimento do homem, por conseguinte, desprovido da dimensão histórica, seria equívoco e mutilado. O mesmo se diga do conhecimento do direito, que é um expressão do viver, do conviver do homem.

Pensar, porém, o homem como ente essencialmente histórico, é afirmá-lo como fonte de todos os valores, cujo projetar-se no tempo nada mais é do que a expressão mesma do espírito in acto, como possibilidade de atuação diversificada e livre.

REFERÊNCIAS
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quinta-feira, 13 de agosto de 2009

OS MOÇANBIQUES NO MUNICIPIO DE OSÓRIO

Participam do grupo mais de 30 pessoas, descendentes de africanos, da sede de Osório,Capão da Canoa, Maquiné e das localidades de Praínha e Pinheiro. Fazem parte do grupo: a Rainha Ginga, o Rei Comgo, os pajens que acompanham o Rei e a Rainha Ginga,a chefia da gerência, a vara dos dançantes, e também os capitães-de-espada,o capitão-chefe e o capitão da bandeiras.Os Moçambiques usam roupas brancas, os pés descalços, um gorro e uma espécie de avental branco.Cada fila é identificada por fitas azuis ou vermelhas que trazem nas roupas,nas pernas usam guizos que são feitos com um cilindro de taquara com sementes. São as maçaquaias para dar ritmo às cantigas.
Os negros de Conceição do Arroio(Osório), como todos os outros negros do Brasil, perderam quase toda a sua cultura, inclusive sua língua, mantendo apenas um pouco da religião e autos folclóricos, aqui denominados Moçambique ou Quicumbi, sendo esta a última manifestação dançante semelhante à do Moçambique.
Moçambique é uma forma de dança de cortejo, cujo enredo,é a representação de um combate simbólico, tendo como centro a rainha ginga. O auto folclórico Moçambique é uma manifestação sócio-cultural-religiosa, criada pela raça negra, com o intuito de preservar suas origens em ambientes diferentes nos quais viviam na África, há quase 400 anos.
As danças, as roupas, o ritmo, as letras de suas músicas foram criadas aqui no Brasil, mais especificamente, no município de Osório, quando ainda se chamava Estância da Serra.
Inicia - se o auto folclórico sempre com a largada das bandeira, e o levantamento do mastro;depois seguem-se as novenas.
A Rainha Ginga é personagem histórica, sendo conhecida a luta dessa Rainha de Angola, que viveu de 1581 a 1663.
Para assumir o trono, mandou matar o Rei de Angola, seu irmão, que por sua vez, teria mandado assassinar o filho da Rainha Ginga, seu seu herdeiro no trono.
A Rainha Ginga combatia os invasores portugueses. Mas ora a eles se aliava, ora aos holandesses contra os portugueses.
A Rainha Ginga chegou a converter - se à religião católica, recebendo o nome cristão de Ana de Souza. Mais tarde renegou a nova fé e expulsou os portugueses invasores de suas terras. Apossou - se do reinado do Congo, fazendo - o dependente da sua vontade.

Nossa Senhora do Rosário

A festa de Nossa Senhora do Rosário, juntamente com os Moçambiques, realiza - se anualmente, na Igreja Matriz em Osório, no mês de outubro.Durante quatro dias o município torna - se sede de uma das manifestações folclóricas mais antigas do Brasil.

OS MOÇAMBIQUES NO MUNICÍPIO DE OSÓRIO

Em 24 de abril de 1742, foi erguida nos campos da Estância da Serra,nas proximidades do Arroio Aceira, por Antônio Gonçalves dos Anjos, uma capela posta sob a proteção da Nossa Senhora da Conceição da Santa Virgem.
Supõe - se que esta capela tenha dado origem à atual cidade de Osório.
Em 18 de janeiro de 1773, foi criada a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição.
Em 1780 sete anos depois de criada a freguesia, a comunidade contava com 158 negros, 234 brancos e 25 índios.
No recenseamento de 1814,Conceição do Arroio contava com:brancos 837, indígenas 19, mestiços 180, escravos de origem africana 538, recém nascidos 74, num total de 1648 almas.
Através dos livros de batismos verifica-se que procedem de Angola,Guiné,Cabo Verde,Congo e Costa da Mina, podendo-se então dizer que o negro de Conceição era procedente destas comunidades africanas.

OS MOCAMBIQUES

Morro Alto, hoje distrito do Município de Maquiné, agrega a maior concentração de pretos e seus descendentes do Litoral Norte. Deste lugar é que se origina o maior número de participantes das Congadas de Osório. A presença dos escravos em Morro Alto está ligada aos canaviais e aos produtos derivados da cana,como cachaça,melado e rapadura.Plantava-se também mandioca para a produção de farinha.
Em Moçambique,na África,havia uma alfândega que controlava a saída de escravos para o Brasil,de várias nacionalidades africanas.
Supõe-se que o auto folclórico realizado em Osório tenha fixado o nome Moçambique por causa daquela alfândega africana.